Seu perfume ainda no casaco dele. Seu batom ainda marca sua camisa branca. O mundo em preto e branco começa a ganhar cores. Não parece mais tão pálido. E até aquela manhã de sábado inesperadamente cinza, anunciando chuva frágil, de repente se rendeu ao sol e sua luz revigorante. Em sua mão, uma xícara de café. Em sua boca: um sorriso pueril – simples agradecimento aos céus. Para um anúncio, uma prévia do que viria a acontecer.
Proust tinha razão. As lembranças são mais fortes e claras quando estão envolvidas em perfumes, embebidas em doce perfume. Toda vez que ele inspira a Srta Incógnita no seu casaco, imagens vêm a sua mente como que num passe de mágica. E então, num flash, ele consegue senti-la, quase poderia tocá-la. Recorda-se...desde cada abraço reconfortante – que ela tanto adora – até sua inquietação na fila. Sim, ela mal podia se conter. Vez ou outra, os dois ficaram se olhando diretamente até ela disfarçar – cena que se repete ao longo da noite -- e mexer no seu cabelo. Aliás, na dúvida, ela sempre mexe no seu cabelo sedoso. Quando começou aquele mútuo interesse, hein? Qual é o marco zero disso tudo. Tenta lembrar.
Ele ali, somente observando. Quando decide buscar sua suposta fila, logo ela aparece para lhe fazer companhia. Não o quer distante. Não vê a hora de entrar naquele bar e aguardar o momento. Chega a temer a não entrada dele devido à fila. Contudo, no fundo, ela sabe que não está a sós com a ansiedade. Ambos desejam e anseiam expor seus sentimentos de uma forma tangível naquela noite.
Entram no bar e logo vão buscar cerveja. Garganta seca. Na verdade, ela ainda fica indecisa por um tempo entre tomar tequila logo de cara ou pegar leve inicialmente com uma Heineken. Prefere beber a cerveja antes. E a banda já está no palco, pronta para as primeiras notas. Encontram um lugar teoricamente mais sossegado. O momento não está longe. Ele sente que ela já não se esforça tanto para não demonstrar interesse, já que fica ao lado dele o tempo todo. Por vezes, durante a conversa, ela chega perto para falar ao ouvido e ele faz caretas. Fica surdo. O ato é repetido algumas vezes e retribuído – sem intenção – posteriormente. Ela diz: “Ahh, não vou falar mais então”. E ele: “também não é assim...rs”. Os dois riem um para o outro. Claro, nada proposital. Aquele fotógrafo deveria ter aproveitado essa chance. Depois, num filme qualquer, ele ouve que a paixão, além de deixar as pontas dos dedos mais sensíveis, eleva a intensidade da audição quando os interessados estão próximos. Acha a explicação um tanto quanto engraçada. Mais algumas músicas. Assim, sua mão tão próxima a dela ; se esbarram. Ela não pensa duas vezes e meio que, automaticamente, sem olhar para trás, a segura firme. Mãos dadas. Então, ele continua curtindo o show como se fosse o Malcolm Young do AC/DC: batendo o pé no chão e bebendo sua Heineken. Entretanto, os dois sabem perfeitamente que o show – por melhor que seja – não passa de mais um coadjuvante nessa história. Ela diz que vai buscar seu amigo de longa data, José Cuervo. Os dedos continuam entrelaçados. Ela o trás consigo até o balcão. Ele fica ali, só vendo seu prazer em engolir o delicioso néctar. Voltam. A hesitação típica dela se esvai continuamente. Agora, está apertando as mãos dele e acariciando-as. Quer um abraço. Abraçados estão. Ele atrás dela. Levemente, ele beija seu ombro esquerdo e fica um tempo com a cabeça ali. Desnecessário dizer que ela quer manter o controle a todo custo, mas neste caso ela não o faz por prepotência e sim para incitar um clima que culminará em êxtase. Ele já entendeu o recado há muito tempo. Está gostoso assim. A pressa não é bem vinda ali.
Enquanto ela conversa algo com sua amiga e uma estranha que – parece – caiu de pára quedas no lugar, permanecem de mãos dadas. Em resumo, não se soltam por nada.
Ela inicia uma dança bem devagar. Lentamente, os dois vão parar próximos de uma mesa. A Srta Incógnita decide por fim se utilizar de sua mais recente “arma”: impetuosidade. Precisa aprimorá-la. A estratégia prossegue e então, ela vira-se. Frente a frente. Deixa a garrafa na mesa. Agora são os olhos que se cruzam e revelam que ambos estão desarmados. Ela sorri, desvia o olhar e abaixa a cabeça. Corpos balançando. Corpos abraçados. Um corpo. Uma eletricidade vai irrompendo através de cada célula viva. Ela o olha novamente. Ele acaricia seu pescoço com os lábios. Estes buscam seus irmãos. Breve esquiva. Sorriso. Longo beijo. Arrepiante. Ardente. Batidas de coração deixam o som ambiente em segundo plano. Ele a sente segurando seu queixo. Ele afaga seus cabelos. Quando voltam a se encarar, ela espera por uma feição sedutora e séria. Sedutora sim, mas:
- Você ri – sorrindo – Fica rindo.
- Hahaha...não dá prá evitar. Eu to feliz!
Ela quer dizer algo em seus ouvidos, mas ele repete uma careta:
- ... não grita...—calmo.
E ela como num gesto meigo:
- Ahh, desculpa.
- Tudo bem. – Com cara de idiota.
Novo abraço. Desejo de ficarem ali até serem expulsos.
Um beijo degustado aos poucos. Ele morde seu lábio inferior, não resiste. Reciprocidade no ar. Rostos próximos. Respiração vívida, quente. Os lábios se provocam. Para lá e cá. Aqui e ali. Sem se tocarem. Curtem a respiração um do outro. Mesmo ritmo cardíaco. Querem extrair o máximo daqueles momentos. Ele morde novamente o lábio dela. O prazer que ela sente é inenarrável, tamanha a volúpia do próximo beijo seguido por uma mordida forte no lábio dele.
- Tenho que ir ao banheiro – ela diz.
- Eu também.
Do mesmo ponto. Ela quer dançar. Ele a admira e chega mais perto para acompanhá-la.
- Hummm....você dança?Hahaha! não acredito! – Solta, surpresa..
- É claro que eu danço. Hahaha...
Ela se volta, apóia as mãos nos ombros dele e diz, olhando para cima, pensativa, prevendo todas as possibilidades:
-- Nossa...você dança mesmo.
Olhando para ele:
- Fiquei surpresa agora.
Ele apenas sorri.
Outro beijo. Ela se desequilibra.
- Aiii...vou cair, hahahaha.
- Não vai não. Eu to aqui – apoiando-a.
- Vou deixar uma marca.
Bela marca. Só depois em casa, ele percebe o vermelho em sua camisa branca. Ri sozinho.
Hora de ir. Cedo. Ficariam, facilmente, até às 10h, ele pensa; e encontra abrigo na face disposta dela. Muito cedo.
- Vai ficar? – Ela questiona.
- Sem você? – indisposto – jamais. Vamos.
Agora, a voz dela está, ligeiramente, mais rouca. Ele se delicia com isso, já que é uma das coisas que mais gosta nela. Srta Incógnita se expressa devagar, gesticulando.
Lá fora, um beijo de despedida breve, afinal:
- Não quero deixar ninguém esperando.
- Eu sei – Carinhoso.
- Vai com cuidado. Volta bem – atenciosa.
- Pode deixar – tranqüilizando-a.
Em casa, assim como ela, ele é invadido por dúvidas. Relembra a empolgação dela pré-bar. Nem sente fome e se tivesse algum dom mágico, ela teria acelerado todos os relógios. Sua curiosidade a impele a constantes incertezas, que a levam a mil perguntas. Sabe que ainda falta muito a conhecer, mas parece estar de braços abertos para receber o mundo dele. Um mundo que, gradativamente, recebe novas nuances de cores presenteadas por ela. Uma estrada se ilumina.